Dentre os mais diversos agentes preventivos ou terapêuticos de sucesso, que causaram um impacto importante na saúde e qualidade de vida das pessoas, talvez seja difícil encontrar um que se assemelhe ao íon flúor (fluoreto = F-). Não há quem não saiba, mesmo entre os indivíduos com menor acesso ao conhecimento gerado no meio científico, que “o flúor protege os dentes da cárie”. Por outro lado, o mecanismo de ação é muitas vezes interpretado de forma inadequada, não sendo raro encontrar descrições incorretas ou inapropriadas como: fortalece os dentes, inibe a produção de ácidos produzidos pelas bactérias da placa dental, método sistêmico de uso de flúor, entre outras, que muitas vezes dificultam a adequada indicação deste íon na prevenção da cárie.
Frente aos mais diversos meios de uso e novos produtos lançados no mercado em todo momento, fica difícil indicar o mais adequado, em nível populacional ou individual, sem que a real ação do íon na cavidade bucal seja conhecida. O objetivo dessa série intitulada “Evidências para o uso de F- em Odontologia” é discutir os mais diversos aspectos do uso deste íon na prevenção da cárie, desde seu mecanismo de ação (parte 1), os meios de utilização (parte 2) e as limitações de seu uso, em termos de toxicidade aguda e crônica (parte 3).
O primeiro conceito importante é: o mecanismo de ação do íon flúor é sempre o mesmo , independente do meio de utilização. Água fluoretada, dentifrícios, bochechos, produtos para aplicação profissional, materiais odontológicos que liberam fluoreto, todos agem da mesma forma: fornecem íons flúor para a cavidade bucal. É necessário mais do que o simples conceito de que o mineral fluorapatita (FA) é menos solúvel do que a hidroxiapatita (HA) da estrutura dental, para entender este mecanismo de ação.
Quando as primeiras observações de que populações que consumiam água naturalmente fluoretada apresentavam um menor índice de cárie foram feitas, acreditou-se que o mineral FA incorporado ao dente seria importante para diminuir a sua solubilidade. Essa idéia perdurou por mais de meio século, e ainda hoje vemos tal descrição em divulgações sobre o mecanismo de ação do flúor. No entanto, mesmo que o dente seja enriquecido com uma grande quantidade de FA, a porcentagem em relação ao mineral total não chega a 10%. Portanto, a menor solubilidade do mineral FA não muda significativamente a solubilidade do dente enriquecido com ela! E, portanto, não é necessário incorporar F- ao dente em formação (efeito sistêmico!) para que ele tenha efeito anticárie.
Mas afinal, como o F- controla a cárie dental? Para entender, voltamos ao conceito de que FA é um mineral menos solúvel do que a HA. Sendo menos solúvel, a FA é um mineral que tende a se precipitar mais facilmente do que a HA em meio contendo cálcio e fosfato inorgânico, minerais presentes na saliva e na placa dental (biofilme). Assim, havendo F- presente na cavidade bucal, toda perda mineral que ocorrer sob o biofilme dental cariogênico tenderá a ser parcialmente revertida pela precipitação no dente do mineral menos solúvel FA. Com isso, a perda mineral líquida é reduzida, uma vez que parte dos minerais perdidos é reposta novamente na estrutura dental.
Assim, é comum a descrição de que o fluoreto diminui a desmineralização e ativa a remineralização do esmalte e da dentina. A diminuição da desmineralização diz respeito à precipitação de minerais na forma de FA, quando a HA da estrutura dental está sendo solubilizada pelo baixo pH gerado no biofilme dental exposto a carboidratos fermentáveis. A ativação da remineralização sugere que, quando o pH do biofilme dental volta a subir, ou quando este é removido pela escovação expondo a estrutura dental à capacidade remineralizadora da saliva, a precipitação de mineral nos locais onde ele foi perdido será ativada, se houver F- presente no meio ambiente bucal.
Portanto, mais importante do que ter F- incorporado à estrutura mineral do dente, é ter fluoreto disponível na cavidade bucal, para ser incorporado à estrutura mineral do dente, quando o mineral mais solúvel HA está sendo dissolvido como conseqüência do processo de cárie. Logo, uma maior concentração de F- no dente é conseqüência desses eventos, e não a causa da menor perda mineral que ocorre na presença deste íon.
O segundo conceito importante diz respeito à palavra parcialmente , descrita acima para refletir a reversão da perda mineral pelo F-. Nesse sentido, a causa da perda mineral no processo de cárie dental é a presença de um biofilme dental cariogênico, que produz ácidos quando exposto a carboidratos fermentáveis (sacarose, principalmente), causando a desmineralização dental na interface dente-biofilme. Assim, são fatores indispensáveis, para o desenvolvimento de cárie, a presença de biofilme e sua exposição ao açúcar. O F- não tem ação sobre esses dois fatores. Embora ele possa apresentar algum efeito antimicrobiano, diminuindo a produção de ácidos por bactérias, mas este só foi demonstrado em laboratório, sob exposição a altas concentrações de F-, que não ocorrem regularmente na cavidade bucal (mínimo 10 ppm F-).
Então, havendo biofilme acumulado sobre os dentes e sendo este exposto a açúcares, mesmo na presença de F-, haverá a produção de ácidos e o mineral do dente terá a tendência de se dissolver. O F- no meio ambiente bucal será importante para reverter, como descrito acima, parte desses minerais perdidos, embora alguma perda mineral sempre ocorrerá.
Portanto, focar medidas preventivas no uso isolado de F-, como descrito acima, sem um controle dos demais fatores necessários para que a doença cárie se desenvolva, não é suficiente, uma vez que isoladamente o fluoreto não impede o desenvolvimento de cárie (ver diagrama).
Por outro lado, a reversão parcial da perda mineral que ocorre na presença de F- é extremamente importante, pois aumenta muito o tempo necessário para que algum sinal clínico de desmineralização seja visível. Em outras palavras, desde que o desafio cariogênico não seja excessivo, o F- disponível na cavidade bucal poderá reverter as pequenas perdas minerais que ocorrem diariamente, de tal forma que nenhum sinal clínico de desmineralização será observado. Clinicamente, este é o mecanismo de ação do F-.
Um indivíduo “zero placa” não terá cárie, mas existe tal indivíduo? Biofilmes sempre se formarão sobre a superfície dental, e em algum local negligenciado pela escovação ele poderá permanecer. Daí a importância de sempre manter o íon na cavidade bucal, independente da idade do indivíduo, pois o processo de cárie ocorre em indivíduos de todas as idades, seja no esmalte ou na superfície radicular exposta! Assim, a associação entre higiene bucal e fluoreto é a maneira mais racional de controlar a cárie dental .
Iniciamos este artigo dizendo que todos os meios de utilização do fluoreto agem da mesma forma, fornecendo íons para a cavidade bucal. No próximo texto vamos abordar como meios aparentemente diferentes de utilização de F-, indo desde água fluoretada, passando pelos dentifrícios e chegando a aplicação profissional de F-, atendem este requisito. No passado esses meios de manter F- constantemente no meio ambiente bucal eram classificados em métodos sistêmicos e tópicos de uso de flúor, fazendo com que até hoje perdure o conceito de que, não existindo água fluoretada numa cidade, devemos fazer suplementação medicamentosa de F- , pré ou pós-natal! Qual é a evidência?
Por Profa. Dra. Livia Maria Andaló Tenuta
Prof. Dr. Jaime Aparecido Cury
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